O Motivo

Após outra noite de insônia, levanto-me lentamente. Gasto alguns minutos fitando a cama de casal que outrora chamávamos ninho de amor. Hoje não passa de um túmulo. Meu túmulo.

Afasto uma das cortinas, observo o movimento da rua. Seria uma manhã de sexta-feira ou mais um domingo? Não que isso me importe. Há muito a passagem do tempo não me afeta. Viro-me em direção ao espelho e o tempo sadicamente me mostra o contrário: há um senhor com pesadas olheiras e um semblante de derrota refletido, não me reconheço.

o silêncio grita, machuca meus ouvidos, desperta em minhas memórias turvas os ecos das risadas das crianças que eu desejei que brincassem aqui um dia. Pergunto-me como tudo chegou a esse ponto. Não consigo voltar muito no passado parar procurar respostas: o álcool me roubou as lembranças daquela época. No entanto, os hematomas que apareciam em minha esposa falavam por si mesmos. Não a odeio por ter partido: até acho que me tolerou por tempo demais.

Vagando pelo quarto, aproximo-me de uma velha escrivaninha. Abro as gavetas, reviro os papéis, procurando por qualquer coisa. Até que um brilho prateado me chama a atenção: um revólver me sorri diabolicamente. A ideia parece tentadora: ergo a arma e nos olhamos por alguns longos segundos.
Por fim, jogo o objeto sobre o móvel e meu corpo sobre a cama. Um sorriso amargo me escapa dos lábios: não há como pôr fim numa vida que já acabou.